A vida nos promove encontros, esbarrões, abalroadas. A correria do mundo moderno, do trabalho das contas a pagar não nos deixa perceber que até nos acidentes o destino nos coloca diante de pessoas, de seres humanos, de gente que, talvez, no fundo, devessem mesmo cruzar nossas vidas. Se não por mero acaso, mas, para mudar nossos conceitos e pré-conceitos a respeito da nossa condição humana. Por falta de atenção, ou pelo fato de o ouvido direito ter perdido metade da capacidade auditiva, não sei ao certo, ontem, não percebi que um veículo preto, um Honda Civic, estava ao lado do meu Fiesta vermelho, na mesma rua e no mesmo local onde, um dia encontrei o então candidato ao Governo do Estado, Omar Aziz, quase em frente à Montana Veículos da Avenida Mário Ypiranga Monteiro, vindo da Darcy Vargas para pegar a alça direita do viaduto. Qualquer falta de atenção ali é fatal. Sempre é preciso olhar para a esquerda e para a direita. Para a esquerda a fim de tentar pegar a pista correta para entrar no viaduto Miguel Arraes. Para a esquerda a fim de não abalroar o motorista que tenta aproveitar a sua ida e também fazer o mesmo. Bem-negociados, os dois movimentos acontecem sem problemas. Dessa vez fui mau-negociador: peguei a ponta do pára-choques do carro preto. Amassei as duas portas do meu Fiesta. Nem discuti se tinha razão ou não: nunca faço isso nos acidentes de carro. Não tenho tempo para esperar perícias e ficar um dia inteiro. Minha vida, meus compromissos valem mais. Já fui enganado algumas vezes por confiar, nunca enganei ninguém quando me propus a pagar os prejuízos. Costumo cumprir rigorosamente, na prática, as ideias que defendo. Mãe e filha saem do carro preto (não direi os nomes por não ter pedido autorização delas). A mãe nervosa demais. Falou dos compromissos do dia, dos documentos que iria providenciar para a filha “tirar” a carteira de motorista, dos pagamentos que iria fazer. Retruquei que também estava ali porque iria fazer alguns pagamentos, mas que ela ficasse calma que eu pagaria todos os prejuízos. A filha, mais calma, pegou o cartão no qual anotei todos os meus dados. O olhar da moça parecia dizer:”mãe, confia nele. Ele não vai te enganar”. Não demora e ela diz:”mãe, ele não disse que vai pagar tudo? Fica calma!”. Ao apelo da filha a mãe parece ter atendido. Mas me disse: ”Tudo bem, seu Gilson. Mas, só se o senhor me acompanhar agora até a minha Oficina de confiança. Não vou nem levar para Concessionária se não eles vão cobrar uma fortuna do senhor”. Acompanhei o carro dela até a Oficina. Fizemos o orçamento. Paguei os prejuízos causados no veículo dela na hora. Então ela comentou, sobre o dono da oficina: ”Ele é de confiança, foi o meu primo, que é juiz, que me indiciou.” “E quem é o seu primo”, perguntei. Ela me disse o nome do juiz, um amigo de adolescência, com quem joguei bola no Muruama Clube de Campo. Ela me revelou que também freqüentou o Muruama algumas vezes. Só naquele momento tive a certeza de que o acidente foi uma forma que a força superior usou para promover o encontro de duas pessoas que no fundo, tinham algum tipo de afinidade, mas que, na correria da vida normal, talvez, jamais, se encontrassem. Antes de dizer de quem era prima, ela me pediu desculpas e justificou-se: “Duas vezes bateram o meu carro, disseram que pagariam tudo, na vinda aqui para a Oficina fugiram. Por isso agi daquela forma com o senhor”. Despedi-me dela com um abraço, acenei com a mão para a filha, que estava dentro do carro, e desejei felicidades às duas. Ela me disse que depois daquela iria vender o carro, pois era a terceira vez que batiam nele. Seguimos nossos destinos. Eu, alguns reais mais pobre. Feliz, porém, por ter, certamente, resgatado naquelas duas pessoas a crença no ser humano. Por volta das 11h30, senti-me na obrigação de ligar para ela e pedir desculpas pelo incômodo causado. Ela também desculpou-se mais uma vez por “ter desconfiado” de mim. Pedi a ela que não vendesse o carro apenas pelo fato de ter acontecido mais um acidente. Disse a ela que, como na vida, os carros sofrem encontros, esbarrões, aranhões. O importante é tirarmos desses episódios ensinamentos que nos tornem melhor a cada abalroada da vida. Estou em paz, tranqüilo e, apesar do acidente, feliz. Feliz da vida! Feliz com a vida!